Um velhinho impossível – José Marques Filho

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Um velhinho impossível

Final de tarde, dia relativamente tranquilo e expediente se encerrando. A idade e a função pesando bastante para aquele ancião que não mudava nunca de aparência – longas barbas brancas assim como seus cabelos, combinando perfeitamente com a impecável branca túnica, usada há séculos. A única modificação ou novidade é que tinha agora um assistente ou ajudante ou, como também lhe foi dito – um estagiário. Última admissão daquele tranquilo, mas longo dia. Ótima aparência e disposição, apesar dos oitenta e nove anos que constava da ficha de admissão. Leu, também, que provinha de um continental país da América do Sul.

Procurando agilizar os trabalhos para encerrar o expediente, foi logo solicitando que retirasse suas roupas lhe entregando um Kit com uma alva e imaculada túnica semelhante a do velho de barbas brancas, um par de sandálias também brancas e foi logo apontando para uma pequena nuvem próxima, onde passaria seu tempo… Ah! Estava me esquecendo – deu-lhe também uma linda harpa, para variar, toda branca, inclusive suas delicadas cordas. Olhando fixamente nos olhos do velho de barbas brancas, com a delicadeza e a doçura características, pediu para que se sentassem em duas cadeiras próximas pois gostaria de falar ou melhor – explicou – refletir sobre algumas questões que estavam lhe incomodando desde o desenlace fatal.

Pacientemente, o velho de barbas brancas explicou-lhe que não era permitido ali na recepção esse tipo de diálogo, mas chamou-lhe atenção a educação e o respeito demonstrado por aquele doce velhinho, que não teve como negar. Teve, inclusive, de suportar a cara de espanto do estagiário, ao qual sempre dizia que as regras por ali eram muito rígidas e jamais maculadas, por ordem expressa do CHEFE.
Tirando do bolso um pedaço de papel, escrito a mão, com uma caligrafia bem pequena e delicada, o velhinho mostrou-o ao velho de barbas brancas.

Como, ao ler os itens, fez cara de interrogação, o velhinho foi logo explicando… – Provavelmente houve um equívoco do CHEFE, pois foi esquecido de me avisar ou dar um sinal que o fim estava próximo e eu não estava preparado para o desenlace fatal. Em virtude do equívoco, deixei alguns projetos inacabados e jamais poderia descansar eternamente sem que fossem completados meus importantes planos terrestres.

Não conseguindo interpretar os itens, o velho de barbas brancas passou o já amassado pedaço de papel para o estagiário cujo nome, se não esquecera, era Hacker (?), sabia apenas que ele fora resgatado por uma influente autoridade celestial quando já estava de embarque para o plano inferior mais profundo. Postado diante de um potente PC, Hacker leu em voz alta os itens manuscritos pelo doce velhinho: livro – referenciais da Bioética; instalação de um sistema nacional de Comitês de Bioética; curso de Bioética no ensino fundamental e médio; curso de
Bioética para os funcionários de escolas de Medicina. Já teclava para iniciar suas pesquisas quando o velho de barbas brancas pediu-lhe que abrisse o currículo Lattes do velhinho. Ficou admirado e espantado, assim como Hacker, com o volume da produção e a importância da atuação acadêmica.

Pediu então que procurasse pelos títulos: Sir (Cavaleiro da Rainha), Prêmio Nobel etc. Não encontrou nenhum título de valor. Passou rapidamente pelo seu pensamento que o gigante sul americano não era muito pródigo em homenagear seus filhos. Mas, embora entendendo os objetivos do velhinho e com toda boa vontade do mundo, disse-lhe que agora, naquele momento, seria absolutamente impossível qualquer providência para terminar seus inacabados projetos. Ficou muito surpreso com a postura do velhinho – só sairia da cadeira e da frente do velho de barbas brancas após falar diretamente com o CHEFE.

Manteve essa postura firme e determinada por horas. Após idas e vindas, utilizando o estagiário e mesmo ligando diretamente no telefone vermelho do CHEFE, terminou por concordar que o velhinho fosse recebido diretamente no gabinete de seu superior, aliás, superior de todos e todas…
A partir daí, não se teve mais notícias do doce velhinho do gigante sul americano, a não ser por alguns fragmentos de fofocas do estagiário – revelou que encostando o ouvido na porta do gabinete do CHEFE escutou os primeiros acordes de harpa dedilhados pelo próprio velhinho após breve acordes provindos da harpa do CHEFE…, viu depois o velhinho – com sua alvas túnica e sandálias – encaminhar-se lentamente para sua nuvem com a harpa debaixo do braço e, por último, que ouvira boatos que chegaram a um acordo que tais projetos seriam finalizados, só não sabe informar mais detalhes pois o velho de barbas brancas andou pegando no seu pé após faltar dois dias seguidos no estágio…

*Homenagem ao prof. William Saad Hossne outono/2017.
Um ano de sua morte.
JOSÉ MARQUES FILHO – doutor em Bioétia

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