A benzedeira – Igor Thiago Xavier Interliche

  • Reading time:5 minuto(s) de leitura
  • Post category:literatura

A benzedeira.

A casa de madeira e sem pintura, localizada no final da rua sem calçamento, talvez não mostrasse a real importância de quem ali morava. Dona Cora, ou Vó Cora tinha aprendido o ofício de benzer em tempos imemoriais. Já carregava no rosto aspecto de muita idade e diziam que quando criança, havia morado com índios que a ensinaram o poder das plantas que curavam e com os beatos que passavam nos vilarejos remotos do interior, as rezas que deviam ser entoadas e os santos que deveriam ser evocados para auxiliar nos tratamentos e nas curas que supostamente auxiliaria, quando era procurada.

Eu mesma, quando criança, lembro de ter entrado ali algumas vezes. Minha mãe nos levava pela lateral da casa aos fundos, onde havia um pequeno quartinho, de chão de concreto vermelho, devidamente encerado, com brilho visível mesmo com a luz fraca de candeeiro ou das velas, que ficavam acesas juntas a um pequeno altar, onde se via uma profusão de imagens, alguns santos conhecidos, um índio, um preto velho de terno branco e faixa vermelha na barriga. Crucifixo junto a candelabros que pendiam colares de contas coloridas e um terço. Ao lado desse pequeno altar, pintada em giz no chão, um círculo com uma estrela e algumas letras, com quatro velas em cruz.

Mas a história que sempre me contavam; dessa não me recordo. Dona Cora tinha sido procurada por minha avó assim que nasci, pois nunca haviam visto o que estava acontecendo. Eu recém-nascida, apresentava uma secreção pelos mamilos, que parecia leite. E imaginem o desespero daquele povo do interior, desprovido de tudo, assustado com tudo o que era diferente do que parecia normal.
-Tragam ela aqui, rápido. Vou ver o que posso fazer!
Imediatamente atendida, minha mãe chegou comigo e Dona Cora já tinha o diagnóstico:
Leite de bruxa. Correu até a parte do quintal onde estavam as ervas, colheu 3 ou quatro folhas desconhecidas da maioria dos que aguardavam e pôs se a rezar. Primeiro impondo as mãos sobre as folhas, depois abanando-as por sobre o meu peito conforme minha mãe contava, finalizando com uma espécie de emplastro com as folhas presas com
uma faixa sobre mim, dizendo que assim permanecesse até o outro dia.

Minha mãe sempre falava sobre aquilo com um brilho nos olhos, a voz assustada quando falava no diagnóstico misturava o medo e a admiração que aquele episódio havia criado na minha família. Depois, conforme fui crescendo, vez ou outra era levada para os diagnósticos e tratamentos da Dona Cora. Uma hora um chá com gosto amargo resolvia a desenteria que durava alguns dias. O chifre de boi queimado e raspado na água quente ajudava na expulsão dos vermes. Algumas vezes eram só as palavras que não conseguia entender e a imposição de mãos que já bastavam.
Percebi que não era só para as enfermidades que procuravam Dona Cora. Ela tinha informações sobre as chuvas, se seriam mais fortes naqueles meses, ou se seriam as mesmas de sempre. Se a seca que veio fora de época ia durar muito, ou se logo passava. Se a vaca havia rejeitado o bezerro porque a lua não tinha sido favorável no nascimento.
Cresci vendo e ouvindo as histórias da cidadezinha pequena do interior, como deve ter acontecido em muitas outras.

Já moça, fui estudar em outra cidade, um pouco maior. Me saí bem nos estudos e consegui ingressar na faculdade. Feito inédito na família. Todas as mulheres eram criadas para arrumar bom casamento. No máximo, algumas foram fazer magistério. Faculdade era coisa de homem e de família rica. Eu, de família simples, pais iletrados e sem condições, nunca poderia ter chegado a capital com a pretensão de estudar medicina. Onde já se viu? Anos depois, médica pediatra formada, aprendi que o leite de bruxa, aquele que a Dona Cora diagnosticou e tratou, iria sumir em pouco tempo de qualquer maneira. Não foram nem as ervas e nem o benzimento que resolveram o problema. Mas, imagina se justo eu, a do contra, seria a responsável por dismistificar e diminuir a admiração por pessoa tão solícita e tão amada, não só por minha família, mas por todas ali das redondezas.

Soube, alguns anos depois que ingressei na faculdade de medicina, que Dona Cora havia falecido, uns diziam com mais de cem anos; o que não é de se duvidar. A história do Leite de bruxa se tornou patrimônio da minha família. Sempre contada com ar solene e intercalando períodos de suspense e alívio, quase sempre na minha presença envergonhada.
Nunca esqueci de Dona Cora, seu aspecto encurvado e suas roupas simples. Da profusão de odores das ervas recém colhidas para o benzimento quando entrava no quartinho, das imagens no altar sob a luz fraca daquelas velas nos fins de tarde e da gratidão que sempre todos tiveram pelo seu dom. Se houve algo que aprendi, foi que todos devem ser atendidos, com a mesma paciência, mesma serenidade e seriedade que ela demonstrava. A benzedeira de certa maneira, foi a primeira profissional de saúde com quem tive contato. E até hoje, me acompanha seja em histórias, seja em lembrança.

Amelie
Autor: IGOR THIAGO XAVIER INTERLICHE
END: Rua Silva Jardim 808 Vila Moraes – Orinhos – SP
Telefone: 14 – 98126-9686