O esperançoso – Igor Thiago Xavier Interliche

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O esperançoso

Clóvis trabalhava em um cartório, no centro de São Paulo, pela sua função e pelo jeito introspectivo; quase mudo, era praticamente ignorado pelos colegas de trabalho. O que fazia era monótono e repetitivo: Carimbava e numerava todas as folhas de todos os processos, notas, ofícios que ali entravam, trabalho mais maçante; impossível. Pelo barulho chato e constante do carimbo, lhe foi dada uma mesa praticamente escondida; o que o fazia mais recluso e ainda menos propenso ao contato com os outros colegas.

Sua vida fora do cartório era tão monótona quanto dentro dele. Morava numa quitinete na parte movimentada do centro, daquelas sem divisão entre quarto e sala, com uma cozinha minúscula com pouco espaço para a geladeira e duas bocas de fogão. Um banheiro de tamanho parecido, onde a pia era o tanque de lavar roupas. Quase não tinha móveis. Uma televisão de tubo sobre a cômoda em que ele guardava os sapatos; todos os 3 pares, uma sandália e um tênis com pouco ou quase nenhum uso. Papéis espalhados em uma das gavetas. Era essa a descrição de todo o
apartamento.

Outra parte da rotina de Clóvis era o almoço. Num restaurante barato próximo ao largo do Arouche, algumas quadras do trabalho. Chegava pontualmente as dez para o meio dia, sentava-se sempre na mesa 23 num canto do fundo do restaurante, e seguia o cardápio do dia no pedido do prato feito, além de uma tubaína que sempre deixava
parte por beber.

Naquela terça-feira de Abril, sua rotina foi abalada. O restaurante estava mais cheio que o normal, talvez por ser início do mês, com as pessoas com seus salários nos bolsos e subitamente, um toque de mão sobre seu ombro esquerdo seguido de uma voz feminina o fizeram parar de mastigar.
-Moço, me desculpe, posso me sentar com você? O restaurante está cheio e não tenho lugar para sentar!
Surpreendido pelo pedido, ele nem conseguiu responder, só olhou para a moça e apontou para a cadeira, seguindo com a mastigação. Ela agradeceu sorridente e se sentou. Olhou para ele poucos segundos, e passou a comer como os olhos ora fixos no prato, ora olhando para pontos ermos longe de onde estava Clóvis. Ele até pensou em perguntar alguma coisa, mas não era do seu feitio, nunca uma coisa daquelas havia acontecido na sua vida. Só olhou na lapela da moça, uma pequena placa metálica com o que devia ser seu nome: Eliza.

A moça terminou rapidamente de comer a pouca quantidade de comida que havia no prato. Era magra, morena, de pele ligeiramente escura, olhos pretos delineados por cílios compridos e por sobrancelhas bem desenhadas. Tinha mãos pequenas e dedos compridos com unhas em tom de rosa claro, com um anel em cada mão. Foi o que ele guardou daquele encontro. Ao acabar a comida, a moça se levantou pedindo licença e agradeceu a gentileza de Clóvis, que dessa vez respondeu com voz gutural e quase inaudível, “por nada!”.

Nunca havia prestado atenção se ela era uma frequentadora habitual do restaurante. Na verdade, a posição em que sentava era justamente para ter o menor contato possível com outras pessoas, queria comer, terminar e sair. Só.
À partir daquele dia, mudou a posição da cadeira. Passou a se sentar de frente para a entrada, na mesma mesa de sempre, mas com a esperança de que em algum momento, Eliza entrasse novamente pela porta e por algum motivo qualquer, pudesse sentar-se novamente com ele.

Passaram-se algumas semanas e nada da moça. A esperança de vê-la no entanto, se mantinha firme. O tempo passou, as semanas se tornaram meses, os meses se tornaram um ano mas Clóvis mantinha-se esperançoso. A rotina, fora do restaurante, passou por algumas transformações. Com a adoção de computadores pelo cartório, o trabalho se tornou um pouco mais rápido, menos barulhento e com um pouco mais de tempo ocioso, tempo esse em que Clóvis passou a escrever alguns bilhetes, para, se por algum motivo à visse de novo e não conseguisse falar nada, pelo menos lhe entregaria um desses, para que ela soubesse da sua admiração e talvez uma retribuição.

Outro ano passou, e mais outro e mais outro e mais outro… Os bilhetes foram se acumulando, a feição de Clóvis foi mudando e a esperança de outrora já não parecia mais a mesma. A obsessão em encontrá-la no restaurante persistia, e havia se tornado uma outra rotina na vida de Clóvis, até um dia chuvoso de Janeiro; quase seis anos após o único momento juntos, em que ele teve uma surpresa, que lhe pareceu tão grande quanto a mão de Eliza sobre seu ombro: Deparou-se com o restaurante fechado, segundo o cartaz na porta, por motivo de força maior e por tempo  indeterminado. Começou a suar frio, sentir dor no peito e falta de ar, os sintomas foram tão importantes que sentou-se na calçada e alguns transeuntes ofereceram ajuda, até chamaram por socorro, que foi recusado por ele. Sem saber para onde ir, voltou ao cartório e não almoçou aquele dia, que para seu desespero também era uma sexta feira, um motivo a mais para sua preocupação de como seria agora sua rotina, sem seu lugar e, o mais importante, sem ela saber onde o encontrar. Não dormiu aquela noite, ficou pensando, andando de um lado para o outro no cubículo em que morava, com a mão sob o queixo, imaginando o que seria da sua vida dali para a frente.

Ainda de madrugada, saiu sem rumo pelo centro, foi buscar na Santa Ifigênia por alguém que pudesse lhe dar a informação que precisava. Correu de um lado a outro da rua, perguntando aos ambulantes e às pessoas paradas sobre o viaduto, recebendo a indicação que precisava. No dia seguinte, já em posse do que procurava, se dirigiu até o restaurante, com uma marreta e um pé de cabra, forçou e conseguiu abrir a porta, ato não compreendido
pelas pessoas que passavam pela frente, que por ser um domingo de garoa, não eram muitas.

Já dentro do restaurante, vazio e escuro, foi até sua mesa, sentou-se e espalhou alguns dos bilhetes que havia escrito ao longo dos anos em que passou esperando. Tirou de uma bolsa o que havia buscado na Santa Ifigênia, um revólver, calibre 38, e colocou o cano na boca, apontado para a parte de cima da cabeça. Um tiro. Estampido seco.
Com fragmentos de osso, cérebro e muito sangue espalhados na parede de trás, formando uma arte abstrata bizarra sem espectadores. Clóvis caído, manchando praticamente todos os bilhetes espalhados com tons de vermelho escuro e vivo do seu sangue que escorria pela boca e por trás da nuca por sobre a mesa. Um único bilhete limpo foi encontrado junto ao corpo, longe dos espalhados por sobre a mesa em que quase não se podia ler nada, mas nesse uma frase e um nome:

“Eliza não vai mais me ver”.

O. Rhemus
Autor: Igor Thiago Xavier Interliche

Endereço : Rua Silva Jardim 808 Ourinhos SP